Ayrton Senna não era conhecido apenas por sua habilidade excepcional nas pistas, mas também por seu conhecimento técnico e interesse genuíno em entender cada detalhe dos carros que conduzia.
Uma história que ilustra não apenas a sensibilidade técnica do piloto, mas também sua atenção aos detalhes, que muitos considerariam imperceptíveis, ocorreu no GP de Dallas, nos Estados Unidos, em 1984, quando ele ainda era um piloto novato na Toleman.
“Ele bateu em um muro e voltou para o box dizendo: ‘O muro mudou de lugar’”, conta Bianca Senna, sobrinha e CEO da Senna Brands (empresa responsável pela gestão das marcas que levam o nome do piloto). O chefe da equipe estranhou: “Ayrton, como é que o muro vai mudar de lugar?”. Ayrton insistiu: “Você pode ter certeza de que mudou”.
Intrigados com a certeza do piloto, foram verificar com a organização da corrida e descobriram que, de fato, o muro havia sido movido um centímetro para dentro da pista. “A precisão dele era tão grande que aquele um centímetro a mais atrapalhou e ele bateu, porque chegava muito perto daquele muro”, explica Bianca.
Um homem com a visão privilegiada. Mesmo a 300 km/h
Essa habilidade de Ayrton foi treinada desde muito cedo. Desde jovem, ele demonstrava uma curiosidade insaciável pelo funcionamento de máquinas. “Ele passava horas desmontando e remontando karts, motos e outros veículos, não apenas para se divertir, mas para compreender o que fazia cada um funcionar”, relembra Bianca.
Para o piloto, a velocidade não era um fim em si, mas o resultado de um entendimento minucioso do carro como um todo.
Na Fórmula 1, em uma época com recursos de telemetria limitados, ele conseguia descrever, com a exatidão de um computador de última geração, o comportamento do carro em cada curva, aceleração e frenagem. “Muitos engenheiros se surpreendiam com o nível de detalhamento que ele conseguia perceber e transmitir”, destaca Bianca. Essa habilidade permitia que sua equipe fizesse ajustes milimétricos, garantindo um desempenho superior nas corridas.
Era uma dedicação que não se limitava ao cockpit. Ele fazia questão de ser parte ativa no desenvolvimento e preparação do carro, passando horas nos boxes ao lado dos mecânicos e trocando ideias sobre os melhores ajustes. “Ele acreditava que cada detalhe importava e que o conhecimento técnico podia ser o diferencial entre vencer ou perder uma corrida”, comenta Bianca.
Para a CEO da Senna Brands, o legado de Ayrton vai além das vitórias: “A combinação de habilidade, conhecimento técnico e dedicação fez dele um piloto único, capaz de transformar a velocidade em arte e ciência ao mesmo tempo.”
S de “Saudades”
Ayrton Senna sempre teve uma ligação especial com o Autódromo de Interlagos, em São Paulo. Desde muito jovem, frequentava o circuito, não apenas assistindo a corridas, mas também participando de competições no kartódromo.
Durante a reforma do autódromo, em 1989, ele se envolveu diretamente na reconfiguração da famosa curva “S” — que hoje leva seu nome —, buscando tornar o traçado mais desafiador e seguro. “Ele queria garantir que o autódromo fosse um ícone digno do automobilismo mundial e um motivo de orgulho para o Brasil”, relembra Bianca. Graças a essa reformulação, o GP do Brasil voltou a ser realizado em São Paulo a partir de 1990.
A paixão de Ayrton por Interlagos culminou na emblemática vitória no Grande Prêmio do Brasil em 1991. Com problemas na caixa de câmbio, ele terminou a prova praticamente com apenas uma marcha, conquistando sua primeira vitória no circuito paulista. A segunda ocorreu em 1993, quando ele deu um show pilotando na chuva, habilidade que se tornou sua marca registrada.
“Para Ayrton, não bastava vencer corridas. Era essencial inspirar outros pilotos e transmitir o orgulho de ser brasileiro”, destaca Bianca.
Nosso Senna
Mesmo após a morte do piloto, sua conexão com Interlagos se intensificou. Em 2022, uma estátua em homenagem a Ayrton foi instalada no local. Intitulada “Nosso Senna”, a obra foi esculpida por Lalalli Senna, também sobrinha de Ayrton, a pedido da mãe do piloto, Dona Neyde.
“No início, pensamos em colocar a estátua em outro lugar, como na Praça Ayrton Senna (também na capital paulista), para facilitar o acesso ao público. Mas, de repente, tudo começou a dar errado, como se não fosse o lugar certo. Foram muitos obstáculos. Então, percebemos que ele queria mesmo ficar no circuito. No fim, foi lá que a estátua ficou. Sinto que foi o Ayrton, de alguma forma, dizendo: ‘Eu quero ficar aqui, onde posso ver a largada’. E hoje, ele está lá, representado pelo ‘Nosso Senna'”, conta Bianca .
O lado da Silva do Senna
Se em público, Ayrton Senna era a face da determinação e seriedade, na vida privada, especialmente com a família, o piloto era o rei das brincadeiras.
“Ele adorava encher a paciência dos sobrinhos”, conta Bianca Senna, relembrando as pegadinhas que o tio gostava de fazer.
Um episódio marcante envolve uma brincadeira que Ayrton repetia à mesa: enquanto todos se serviam no buffet, ele enchia os talheres dos sobrinhos com pimenta, garantindo boas risadas ao ver suas reações.
“A boca começava a arder e a gente tomava água, mas piorava, porque ele também tinha colocado pimenta no copo! E aí ele ficava olhando para a nossa cara assim e perguntava: ‘Por que será que está ardido?’, fingindo não saber de nada. Foi assim que aprendi a gostar de pimenta”, fala Bianca, rindo.
Ela conta que, por mais ocupado que estivesse, Senna sempre dava um jeito de estar perto dos parentes. Para ele, a família era o alicerce que lhe proporcionava equilíbrio e força para enfrentar as pressões da Fórmula 1. “Diferentemente de muitos jovens na faixa dos 30 anos, que preferem passar as férias em viagens ou festas, ele gostava de estar com a gente, especialmente com sua família e nós, os sobrinhos.”
Carteira caçada em família
Mesmo fora das pistas, Ayrton era uma pessoa que nunca parava. Seja em corridas de jet-ski, passeios de barco ou competições amigáveis, Ayrton encontrava maneiras de manter todos em movimento.
Bianca relembra um episódio marcante que aconteceu na fazenda da família, no interior de São Paulo. O lugar contava com uma pista de kart e tinha regras rígidas de utilização, formuladas pelo avô de Senna. Uma delas era que só se podia correr nela com karts, nunca carros comuns.
Eis que, um belo dia, o patriarca flagra Ayrton, Viviane (mãe de Bianca) e outros familiares usando a pista para uma corrida de carros. Furioso, ele confiscou a “carteira de piloto” de todos, inclusive do campeão de Fórmula 1, que teve de se contentar em andar de bicicleta pelo restante do fim de semana.
A proximidade com a família não era apenas uma fonte de lazer, mas também de fortalecimento emocional. “Os momentos em família ajudavam Ayrton a se manter resiliente diante dos desafios da carreira”, destaca Bianca. Essa ligação profunda com suas raízes permitia que ele preservasse seus valores e essência, mesmo vivendo a vida intensa de um piloto de Fórmula 1.